sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Diálogos no espelho

Da primeira vez, aproximei-me lentamente do espelho. Ensaiei alguns olhares, um pouco receosos, e logo desviei para seguir a diante. Às vezes me olhava de longe, outras de perto, olhando os detalhes da beleza no espelho. Mas foi só depois de algumas tentativas que consegui, de fato, encontrar meus olhos. 

Olhei-me incansavelmente, mergulhando no fundo do olhar. 

Olhos que escorriam.

Olhos que falavam.

Assisti-me chorar por longos e dolorosos minutos. Observei as lágrimas nascerem, multiplicarem-se e, só depois de se acumularem, escorrerem por entre as sardinhas do meu rosto. Algumas dirigiam-se a boca e tinham gosto de sal. 

Olhar-me tornou-se uma prática cada vez mais presente no meu dia-a-dia. Colocar-me diante de mim mesma no espelho e expor aquilo que não podia ser compartilhado com mais ninguém. 

Aos poucos o encontro foi expandindo-se e o diálogo ganhou voz. Comecei a falar comigo mesma, com a minha imagem e experimentar a estranha sensação de ser uma outra diante de mim.

Por vezes referia-me ao espelho falando "você", por outras "eu". Oscilando a voz ativa entre a imagem e a carne. Variando meu papel de falante e ouvinte. Pude surpreender-me com as expressões do meu rosto. Existe coisa mais especial do que surpreender-se consigo?

Criei nesse encontro um ambiente seguro para chorar as minhas dores mais profundas. E percebi que, através do meu olhar, podia conectar-me também com outras pessoas que passaram por mim. Olhando-me fixamente no espelho, experimentei falar com mãe, pai, amigos, namorados... E assim fui descobrindo, com cada vez mais clareza, que há sempre um outro que vive em nós.

Foi no encontro comigo que pude afirmar a minha própria história. Afirmar tudo aquilo que me acontece e me aconteceu. Afirmar uma história não é culpar-se ou sorrir para tudo que nos passa, mas afirmar e acolher o ocorrido como o possível que se desenhou em nós. É desapegar-se dos "e se" e viver a partir do que nos aconteceu.

Olhar-me nos olhos e encontrar os olhares daqueles que já me olharam tanto, daqueles que mergulharam em mim, daqueles em quem eu mergulhei. Percebendo que era possível conversar, a partir do espelho, com aqueles que já se foram - seja para outro plano ou para um mundo diferente do meu - pude liberar tantas pessoas que eu ainda prendia em mim.

Querido, você pode ir embora, não é com você, é comigo.

Troquei as mensagens e os telefonemas pelos encontros, sempre precisos e pontuais, com o meu olhar. Passei a falar comigo. Às vezes este eu tinha outros nomes. Nomes de ex-namorados, de familiares, pessoas do trabalho. Mas esta foi a minha grande descoberta: esses eus com múltiplos nomes também eram o eu que me olhava na imagem refletida.

Assim pude deixar ir.

Foi liberando esses outros de mim que pude também me libertar e construir para mim a experiência de liberdade que eu tanto desejara. Depois de muito tempo senti-me livre, completa e em paz. 

Nesses incansáveis diálogos no espelho experimentei pedir-me e oferecer-me o acolhimento que precisava. Dei lugar às dores mais doídas, às histórias mais duras de serem narradas, aos movimentos mais difíceis de passarem. E juntas - eu e eu mesma, eu e a imagem, eu e tantas outras - criamos espaço.

Foi nesses espaços, nesse entre, que pudemos construir aquilo que chamamos de amor. 

Um amor livre.

Amor livre de qualquer coisa que prende, apega e exige. 
Um amor livre de culpa. 
Um amor por mim.

1 comentários:

Anônimo disse...

Sempre acompanhei e acompanharei como uma puma à espera.

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